O tempo! O passado! [...] Aquilo que fui e nunca mais
serei! Aquilo que tive, e não tornarei a ter! Os Mortos! Os
mortos que me amaram na minha infância. Quando os evoco
toda a alma me esfria e eu sinto-me desterrado de corações,
sozinho na noite de mim-próprio, chorando como um mendigo
o silêncio fechado de todas as portas.
Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre criança.
Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os
brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com
mãos tão fracas o bibe azul sujo de lágrimas comprimidas? Se
eu não poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora
o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança
a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a
tristeza da criança no horror desprevenido do meu coração
exausto. Dôo-me com toda a estatura da vida sentida, e são
minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as
bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza,
é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passam usam-me
como luzes de fósforos riscados
no estofo sensível do meu
coração.
coração.
Livro do Desassossego (Fernando Pessoa/Bernardo Soares)
3 comments:
E quantas pessoas não há por aí que se revêm nas crianças com quem se cruzam?
é triste, mas é de Fernando Pessoa.
Bjs
Como eu gosto dos sentires de Pessoa.
PITANGUEIRA CONVIDA! DOMINGO 19.
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