Contemplava o mar
imenso daquela praia e revia a sua vida no desfazer de cada onda que chegava
até à praia, na outra que em seguida se formava
e mais outra e outra e outra…
Era assim a vida, a sua vida. De repente, tudo tomava um
novo curso não se sabia a dimensão de cada nova onda que se formava, o modo
como se espraiava pela areia, como iria roçar-se nos seus pés, se vinha doce ou agressiva para a deitar
abaixo. As suas pernas agora não tinham força ou tinham muito menos. Ela que
tanto gostava de mergulhar nas ondas de qualquer mar, agora ficava-se pela
rebentação , pela frescura da maré , pela suavidade das ondas a desfazerem-se
na praia. Ou sentava-se simplesmente à
beira-mar.
A sua vida mudara radicalmente desde aquele dia em que abriu
o relatório médico e se debateu com a frontalidade dos termos técnicos :
neoplasia maligna , carcinoma. Era um sábado, 28 de junho e nada mais podia
fazer senão aguardar até segunda-feira. Mas telefonou para Cristina, médica sua
amiga que igualmente tivera cancro. Explicou-lhe tudo e disse o que era urgente
tratar. Foi fazer todos os exames
indispensáveis , sem se desesperar, sem verter uma lágrima, como se fosse fazer
mais uma viagem ou apanhar mais um avião com destino desconhecido. Ouviu,
escutou o que lhe disseram, leu, informou-se. E ensimesmada como é quando quer
alcançar qualquer coisa, meteu na cabeça apenas uma ideia : - vou-me curar!
Começou a quimioterapia 24H/dia durante seis semanas e a
radioterapia em simultâneo cinco dias
por semana. Todas as terças feiras fazia análises e mudava o
reservatório da quimio, processo relativamente simples pois que tinha um
implantofix. Mas era doloroso entrar na
sala da quimio, onde tantos pacientes chegavam a ficar três e quatro horas para
fazer as suas sessões. Via-se gente de todas as cores, de todas as idades,
velhos e novos, pretos e brancos, homens e mulheres. Ninguém falava entre si,
ninguém queria falar do seu mal, da sua doença, alguns trocavam algumas frases
com o familiar que os acompanhava, por vezes um filho, a esposa ou o marido,
algum irmão; alguns levavam o almoço de casa , como aquele casal de idosos que
vinha de muito longe, outros comiam do que as voluntários lhes ofereciam; alguns
comeriam talvez ali a sua única refeição…
Aquilo chocava-a , muito mais que a sua doença. As suas
análises estiveram sempre boas, o seu aspecto também, não perdeu um Kilo nem um
cabelo. Mas cada semana que passava lhe custava mais e mais fazer o tratamento.
A radio queimava-lhe a pele, a quimio provocou-lhe uma infecção intestinal
traduzida num caudal permanente duma diarreia que não parava, impossível de
controlar. A tensão arterial desceu a níveis
impensáveis e mal se tinha em pé; as análises estavam péssimas e o
médico mandou suspender de imediato a quimio . Passou um dia no hospital a
levar soros para recuperar. À noite ,
estava de novo em casa, jantou qualquer coisa e ainda arranjou forças para ir
passear os cães, para ir tratar do Leão da Rodésia abandonado na mata. Dormiu
tranquila, sem o peso do frasco da quimio e o tubo sempre a bombar … Que
alivio! Mais uma semana de radioterapia e tudo acabava. Mais análises , mais
consultas e tudo estava dentro dos parâmetros “normais”.
- Só volta daqui a um mês para novas análises e novos
exames, para marcarmos a cirurgia – disse o médico. Vá de férias e aproveite estes dias para se
recompor!
Foi o que fez. No dia seguinte, arrancaram para a Lagoa de
Melides, um local calmo , tranquilo, com uma praia imensa, sem poluição, muito
sossego, à parte o grasnar dos patos na Lagoa e das gaivotas, que não a
proibiram de apanhar sol, nem de tomar banhos de mar, que evitasse sim as
horas de sol mais forte, a exposição prolongada ao sol e que usasse um protetor
50 e que se alimentasse bem, muito peixe, muita fruta , muitos legumes e algum
exercício, o que lhe fosse possível. Da casa avistava-se a Lagoa e a praia, o
mar e ali mesmo ao lado havia um pinhal cheio de passarada, o que fazia as suas
delicias. Cada dia era um novo dia para ela . Hoje já andava um pouco mais, já
conseguia ir até à praia a pé, já não tinha tantas dores, a pele estava menos
sensível, as queimaduras foram deixando de se sentir. Foi-se aventurando a
entrar cada dia um pouco mais na água do mar. Não chegou a nadar nem a
mergulhar porque não tem ainda forças para isso, mas aproveitou cada dia de sol
e de mar, extasiou-se com o pôr do sol ou a lua cheia por entre os pinheirais,
agradeceu ao Universo todas aquelas dádivas com que estava a ser contemplada.
Contra os seus antigos hábitos, deitava-se cedo e dormia a sesta de tarde,
descansava mais e aproveitava cada minuto de vida, cada oportunidade. E lia,
lia sem cessar e estudava as personagens que lhe surgiam . Como o tempo tinha
agora outro sentido , como eram por vezes longas as horas, levou consigo “O
Quarteto de Alexandria”, um livro imenso em todos os sentidos mas que a
deliciava.
Pensava em Sara, sua mãe, que morrera de cancro há mais de
trinta anos atrás. E em Henrique que tivera cancro do pulmão e nos deixara aos
trinta e sete anos. Lembrava José, com cancro da próstata, Cristina e Elisa com
cancro da mama tal como a irmã de Milú. Mais recentemente, Isabel
telefonara-lhe a dizer que António também tinha carcinoma e faria os mesmos
tratamentos que ela e depois a mesma cirurgia. Lembrava esses e tantos outros,
todos unidos por um mesmo fio que as
pessoas não entendiam. Mas não valia sequer a pena questionar porquê eu, porquê
agora. ..
Cristina dizia que tínhamos de ser pragmáticos. Assim era .
E tínhamos de aprender a viver de outra forma, a viver numa outra dimensão. E a
dar testemunho. A falar da doença e do cancro e dos tratamentos sem tabus nem
omissões ou palavras veladas a dissimular a essência da coisa. Tudo hoje é
diferente de há trinta ou quarenta anos atrás, os tratamentos são outros, têm
outras especificidades, as máquinas e os médicos dispõem de tecnologias inexistentes outrora; a ciência evolui a cada passo com
possibilidades infinitas. Nós e a nossa mentalidade também. A nossa
determinação e a nossa postura são
decisivos também em situações destas. Mas sobretudo , falemos do assunto ,
clarifiquemos, deixemos sair o turbilhão de questões que nos avassalam,
comuniquemos com os outros, com o Universo, com o Além, com as redes sociais
através dos mails, dos blogues, dos facebooks para quem os tenha. Não deixemos
calar a dor em nós, não permitamos que o pranto e o sofrimento nos invadam.
Exteriorizemos!
Saibamos aproveitar cada dia de sol, cada flor, cada sabor ,
cada perfume,
cada onda do mar.
E inebriemo-nos com eles!